[Reportagem especial] Ressignificação do abuso
- Mariana Pedroza
- 2 de set.
- 8 min de leitura
Como o SUS e outro serviços públicos transformaram um município marcado pela violência sexual
Um dos significados atribuídos à palavra estigma está relacionado à marca deixada por uma ferida ou trauma. Há cinco anos, os moradores de Castelo do Piauí - PI, cidade distante 187 km de Teresina, tentam superar uma história que tomou conta dos principais jornais do país e que marcou cada um dos seus pouco mais de 20 mil habitantes.
“Meu marido trabalha com transporte de cargas e viaja principalmente aqui pelo Nordeste. Ele pensou em trocar a placa do caminhão porque sempre que alguém via ‘Castelo do Piauí’ começava a perguntar sobre as meninas. As pessoas de fora sempre queriam saber detalhes do que aconteceu. Essa história transformou todo mundo na cidade”, conta Vera Lúcia Rodrigues, enfermeira na Unidade Básica de Saúde Manuel Furtado de Morais.
As meninas são quatro jovens que, na tarde de 27 de maio de 2015, foram até o Morro do Garrote, conhecido ponto turístico dentro do município. O local, que foi escolhido por elas como cenário para tirar fotos que seriam publicadas nas redes sociais, se transformou durante duas horas em palco de horror. Elas foram estupradas, jogadas de uma altura de quase dez metros e apedrejadas por quatro menores de idade e por um maior que era fugitivo da polícia. A mais velha, que tinha 17 anos, morreu dez dias depois em decorrência dos ferimentos sofridos.
O caso de Castelo do Piauí confirma algumas tendências quando o assunto é violência sexual contra menores de idade no país. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, naquele mesmo 27 de maio, outras 93 crianças e adolescentes foram estuprados. A série histórica mostra que esse tipo de crime tem crescido: em 2018, foram registradas 66 mil ocorrências de todas as faixas etárias no território nacional, o maior número em dez anos. É sabido que a maior parte das vítimas são do sexo feminino, mas o dado mais revelador mostra que 75% delas têm entre 0 e 19 anos. O levantamento aponta ainda que 6 em cada 10 menores de idade que são abusados tem seus corpos violados por pessoas da própria família.
A pequena cidade, que era referência no estado pelas belezas naturais e os altos índices de desenvolvimento da educação básica, viu sua realidade ser transformada da noite para o dia. Algo precisava ser feito. “O trauma não é algo que vai ser esquecido, mas ele pode ser ressignificado”. A frase é da psicóloga e coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial de Castelo do Piauí, Enilda da Silva Alves.
“As vítimas e as famílias delas eram nosso foco principal, mas a gente também precisava acolher os castelenses. As pessoas adoeceram, padeceram de uma tristeza coletiva. Se a gente quisesse que essa tragédia não se repetisse, era preciso envolver o poder público e a comunidade num processo de enfrentamento da dor, de aprendizado e de mudança de comportamento”, contou à Revista Conasems a secretária municipal de saúde Leila de Almeida Soares.
Trabalho em rede
Em março de 2016, quase um ano depois do caso ter repercutido nacionalmente, gestores de várias pastas como saúde, educação, assistência social, segurança e também representantes do Judiciário, Ministério Público e Conselho Tutelar se reuniram para construir de forma coletiva ações intersetoriais contra o abuso infantojuvenil no município. Seguindo a filosofia de que todos os setores do poder público dependem da atuação um do outro para reduzir o número de casos, o mês de maio foi escolhido para concentrar as principais ações, que também são realizadas ao longo do ano.
“Nós nomeamos o projeto como 18 de Maio porque esse é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil. Além do mote principal, o objetivo é, aos poucos, dar uma nova cara para a nossa cidade. É assim que queremos ser conhecidos: como uma população que enfrentou um problema social infelizmente muito comum por aqui”, explica a agente comunitária de saúde e uma das autoras do trabalho, Cleudiana Silva.
Além da melhoria no acesso aos serviços, seja no atendimento em uma unidade de saúde após um caso de abuso, ou no registro da ocorrência na polícia, acontecem diversas ações concomitantes na cidade que abrangem os mais diversos tipos de públicos. “Nós entregamos panfletos em filas de banco, cartórios, fazemos mini palestras na recepção das UBS enquanto os pacientes aguardam atendimento e promovemos diversos encontros com donos de bares e casas de show alertando sobre pedofilia e prostituição infantil. Além disso, fazemos o que pra mim talvez seja o mais essencial: vamos até as escolas conversar com crianças e adolescentes para orientá-los e ajudar na construção de uma geração mais consciente dos seus direitos e menos opressora”, complementa a ACS, que também é presidente da Associação de Proteção à Criança e Adolescente local.
“A importância do 18 de Maio é sair do senso comum de que casos de abuso sexual e estupro são responsabilidade exclusiva da polícia. Isso é um problema de saúde pública, então nós da saúde temos obrigação de nos envolver; é um problema cultural e aí entra a educação para mudar esses hábitos e é um distúrbio social que deve ser acolhido pelo judiciário e assistência social”, explica a secretária municipal de saúde, Leila de Almeida Soares.
Premiado em 2019 na 16ª Mostra Brasil, aqui tem SUS durante o XXXV Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, o 18 de Maio qualificou a rede de assistência e proteção à vítima, mas também tem dado os primeiros passos para transformar comportamentos machistas na região. “Acredito que um dos principais desafios foi falar sobre educação sexual nos colégios porque ainda existem muitos tabus sobre esse assunto. Somente com o conhecimento sobre corpo humano e respeito a todos os corpos que é possível dar início a um trabalho de conscientização sobre abuso sexual. Informação é empoderamento e, mais que isso, é respeito com o outro também”, justifica a psicóloga Enilda.
Nas 27 escolas de Castelo do Piauí, a parceria entre saúde e educação tem tido resultados expressivos. Profissionais que integram as equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) capacitaram professores, coordenadores e diretores dos colégios para perceberem mudanças nos comportamentos dos alunos. “Já aconteceu mais de uma vez de uma professora da educação infantil acompanhar uma criança ao banheiro e perceber marcas estranhas pelo corpo dela e informar diretamente à direção daquela escola para que o Conselho Tutelar fosse acionado. Nós não podemos ter medo de enfrentar situações como essas porque muitas dessas crianças não têm idade o suficiente para relatar maus tratos ou abusos e dependem da nossa interferência”, justificou a secretária municipal de educação, Idála Soares Moreira.
O trabalho desenvolvido nos colégios engloba também palestras para os estudantes com profissionais do NASF, cineclube acompanhado de debate sobre sexualidade, além de rodas de conversas com mães e pais. “Outra iniciativa que tem dado voz a muitas dessas crianças e adolescentes é a Caixinha de Segredos. Nós deixamos ela nas áreas comuns das escolas e a vítima pode fazer uma denúncia somente com um bilhete ou desenho, mais comum nas faixas etárias que ainda não foram alfabetizadas”, contou Idála.
Os vários papéis do SUS
As Unidades Básicas de Saúde (UBS), Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e hospitais têm assumido um papel que vai além das suas atividades fim: servir como local de denúncia de maus tratos, violência ou abuso sexual. “No dia a dia, é comum chegarem mulheres para fazer o papanicolau ou mães que agendam consulta para seus filhos e, durante a conversa comigo ou com o médico, relatarem a violência que sofreram. As unidades de saúde se transformaram em um lugar neutro onde os agressores não imaginam que elas vão denunciá-los”, relata a enfermeira Vera Lúcia.
Desde 2011, a notificação de violências passou a ser compulsória para todos os serviços de saúde públicos e privados conforme preconiza o Ministério da Saúde. A partir de 2014, casos de abuso sexual passaram a ter caráter imediato de notificação devendo ser comunicados à Secretaria Municipal de Saúde em até 24 horas após o atendimento da vítima. Outra ação obrigatória é a comunicação de qualquer tipo de violação contra crianças e adolescentes ao Conselho Tutelar, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Segundo o Ministério da Justiça, menos de 10% das vítimas de crimes de violência sexual relatam o ocorrido à polícia. Investir, então, em profissionais de saúde que estejam atentos aos menores detalhes foi o pontapé inicial para transformar Castelo do Piauí. Desde agentes comunitários de saúde, que conhecem as condições de moradia e estrutura familiar da população que reside na sua área de cobertura, até profissionais que atendem o público nos consultórios passaram por rodas de conversa para sensibilização.
“Cada profissional do SUS aqui na nossa cidade entende a importância do seu trabalho na vida dessas vítimas. O fato de atuarmos em rede fortalece o serviço que prestamos e conseguimos dar um retorno melhor pros moradores”, explica Leila de Almeida Soares.
Histórias que se repetem
“É óbvio que o natural é questionar e condenar quem comete esses casos de abuso e violência, mas um dos meus papéis enquanto assistente social é buscar também compreensão no outro lado da história. A maioria das pessoas que praticam esses tipos de crime vêm de lares violentos, de mães que apanham de seus maridos dentre vários outros contextos”. A fala é da secretária municipal de assistência social e pedagoga Maria das Graças da Silva. “A maioria dessas pessoas não são ruins por escolha e o nosso papel gira em torno de também reinseri-las socialmente”, continua Maria das Graças.
No caso do estupro coletivo que aconteceu em 2015, todos os menores de idade envolvidos moravam na cidade e conviviam com a comunidade. “Enquanto ex-professora de algumas das vítimas e dos agressores me doeu profundamente essa história. Me questionei enquanto profissional porque nunca percebi um comportamento agressivo a esse ponto em nenhum dos meninos. É por isso que um trabalho em rede que envolva diversos profissionais é fundamental”, salienta a secretária municipal de educação, Idála Soares Moreira.
Segundo a Secretaria de Assistência Social, os jovens vinham de núcleos familiares vulneráveis, onde violência, abandono e pobreza sempre foram a realidade. “Quero deixar claro que ninguém diminuiu os crimes que eles cometeram, mas nós enquanto poder público temos também que assistir essas pessoas e procurar auxiliar suas famílias. Eles foram acompanhados por psicólogos do CRAS conforme designou o juiz na audiência”, justifica Leila.
Renascimento
Duas das quatro vítimas do caso de cinco anos atrás conversaram com a Revista Conasems sobre como conduziram a vida após o episódio de estupro. Bruna Souza* tem hoje 21 anos, está terminando a graduação em Psicologia em Teresina - PI e quer retornar a Castelo do Piauí para atender a população da sua cidade. Luciana Ribeiro*, com 20 anos, continua morando no município e teve a primeira filha recentemente.
“Nesses últimos anos a gente pode perceber toda a bondade e toda a maldade do ser humano. Diversas vezes nós fomos questionadas pelas pessoas sobre o caso e ouvimos comentários muito tristes, mas ao mesmo tempo tivemos a oportunidade de conhecer profissionais incríveis que nos apoiaram desde sempre. É por isso que eu acho que um trabalho humanizado transforma a experiência de ser vítima de violência”, conta Luciana.
O acompanhamento inicial das duas jovens foi feito por profissionais de Teresina, já que ambas se mudaram para a capital piauiense depois do ocorrido. De volta à sua cidade, Luciana continuou sendo assistida pela equipe do CAPS e fez seu pré-natal. “Eu quero ser para a minha filha um exemplo de que continuei adiante porque não é justo comigo ser sempre lembrada por essa história. Só posso agradecer por ter sido sempre bem acolhida por todos os profissionais da saúde e da assistência social. O trabalho deles me transformou e muda a vida de outras dezenas de crianças e adolescentes que sofrem abusos constantes aqui em Castelo”.
“Eu quero me formar e voltar pra cá para atender as pessoas da minha cidade. Isso é muito importante para mim porque fui acolhida como filha por várias das enfermeiras, médicos e psicólogos. Quando me mudei para Teresina e falava que era de Castelo do Piauí as pessoas sempre me perguntavam se eu conhecia ‘as meninas do caso de estupro’ e eu não respondia nada. Eu fui uma das meninas, mas sou mais do que isso. Quero fazer parte da equipe de saúde da minha cidade e ver a potência do meu trabalho”, finaliza Bruna*.
Esta reportagem especial foi escrita por mim para uma edição planejada da Revista Conasems. No entanto, devido à pandemia de COVID-19, as viagens de apuração para as outras reportagens da edição foram suspensas, e a publicação acabou sendo adiada por dois anos antes de ser definitivamente cancelada. Este material, produzido durante trabalho de campo em Castelo do Piauí, permanece inédito.
Os nomes com * são fictícios para proteger a identidade das vítimas.












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